No seu livro "Para que a memória não se apague" (Dezembro de 2013), António Fernando Guimarães faz-nos um interessante relato do contrabando na Serra do Gerês. O texto a seguir, é uma transcrição de uma parte desse livro:
"(...)
O contrabando tornou-se também o principal impulsionador de contactos entre os povos dos dois lados da raia. A fronteira política nunca cortou as relações entre as populações raianas. Estabeleceram-se, durante séculos, laços de amizade e, sobretudo, cumplicidade, pelo secretismo que rodeava esta actividade económica ilegal. Promoveram-se alguns casamentos entre raparigas galegas e rapazes de Cabril. Como alguns entrevistados recordam os bailaricos com as Galegas atrevidas!
O contrabando também obrigou o Estado a montar um dispositivo de vigilância da fronteira, de envergadura considerável, o que originou a deslocação de jovens guardas para as povoações junto da raia, onde casaram e constituíram família. Foi, por isso, também uma forma de fixar as pessoas no interior e de povoamento das aldeias junto da raia.
Os habitantes de Cabril, numa luta constante na procura de rendimentos, curvados pelo peso da mercadoria, fintando autoridades, resistindo ao clima rigoroso (frígido no Inverno e abrasador no Verão), protagonizaram, sem dúvida, muitas histórias de vida nas serras do Gerês e do Xurés. Não se circunscrevem, porém, apenas ao contrabando. Há, sem dúvida, uma interligação muito grande entre a pastorícia, o contrabando, a exploração e comércio do volfrâmio e do carvão. Todas estas actividades tinham, como pano de fundo, a beleza deslumbrante das serras do Gerês e do Xurés, e as mesmas personagens. O contrabandista era, ao mesmo tempo, produtor de carvão, agricultor, pastor, explorador e carregador de volfrâmio: um dia, atravessando a raia em direcção a Vilameá, Torneiros, Rio Caldo, Padrandô e, por vezes, a Lobios; no dia seguinte, calcorreando a serra à procura de gado tresmalhado; noutro dia, escavando o solo, na serra, à procura de volfrâmio ou arrancando trogas. Também o podíamos encontrar nos campos, umas vezes ceifando, noutras cortando milho ou plantando a batata. Não havia tempo de parar; faltava ainda acolher ao olival, apanhar azeitona, e recolher e pensar os animais. Bastava não ver o jovem pela aldeia ou campo, e a guarda fiscal pensava logo que ele estava para o contrabando.
Encontrámos algumas pessoas capazes de relatar com rigor factos ocorridos nas serras do Gerês e do Xurés, principalmente entre 1939 e 1974, relacionados com o contrabando e outras actividades na procura de sustento. Aproveitaram-se os seus depoimentos que a seguir reproduzimos. Lamenta-se o facto de os mais velhos terem falecido e levado consigo preciosas informações sobre as caminhadas pelas serras do Gerês e do Xurés, transportando mercadoria, segundo dizem cerca de 30 kg na ida e no regresso, fugindo à autoridade. Guardas-fiscais e Carabineiros, também estes, com histórias de vida nas serras do Gerês e do Xurés ou no quartel, bonitas de contar.
A odisseia do contrabandista não terminada na raia. O percurso prolongava-se para além da fronteira e a aproximação às aldeias galegas exigia cuidados redobrados. Aguardavam nos arredores a informação de um mensageiro, normalmente uma mulher galega ou um colega que ia à frente para verificar se podiam entrar na povoação. Confirmada a ausência da guardia civil ou dos carabineiros, avançavam com precaução, eles carregando fardos de palha ou conduzindo a burra pela corda, e elas o contrabando. Outra forma de assinalar a presença da autoridade na povoação era um pano colocado em sítio conhecido.
Portela do Homem e Lobios era os postos das autoridades espanholas, mais próximos de Torneiros e Vilameá. Deslocavam-se de bicicleta, capote e armamento pesado para subir de Lobios até Torneiros, Vilameá e Portela do Homem. caminhavam lentamente, com a bicicleta pela mão, o que facilitava muito a vida aos contrabandistas.
Estava enraizado no pensamento das pessoas que os carabineiros e a guardia civil atiravam sobre os contrabandistas para matar, se tentassem fugir. Um jovem da freguesia de São Lourenço de Cabril foi morto pela guardia civil em Torneiros, no ano de 1942, com um tiro nas costas. Nos depoimentos recolhidos, relatam que as autoridades espanholas se limitava a colocar uma placa em madeira, junto ao corpo, onde se podia ler: "morto pela Guardia Civil ou Carabineiro." Trazer o cadáver para Portugal era impensável, pela burocracia e despesa. Este jovem foi sepultado em Padrandô. Os que eram presos passavam por várias cadeias, muito maltratados e depois entregues às autoridades portuguesas, em Chaves.
Genericamente, os depoimentos recolhidos dos contrabandistas são coincidentes quantos às habituais rotas do contrabando:
- Rota dos lugares da Baixa (Vila, Cavalos, Chãos, S. Ane): Corte do Costa, Lajes da Lagoa, Lagoa, Couce, Garganta de Lamas de Homem, Lamas de Homem, Abrótegas, Lama da Amoreira, Raia, caminho da Corga das Sombras, Vilameá.
- Rota do lugar de Pincães: Campelinho, Pereira, Ruivós, Palma, Alcântara, Borrageiro, Pássaro, Revolta, Teixo, Alvas, Raia, Carvalhosa e Vilameá. Por vezes, seguiam a rota anterior, a partir de Lagoa.
- Rota do lugar de Fafião: Touro, Fontelas, Escalheiro e, depois, seguiam a rota do lugar de Pincães.
- Rota de outros lugares da Baixa (Vila Boa, Fontainho, Bostuchão, Chelo e S. Lourenço): Caminho do Fojo de Xertelo, Cubo, Porto Novo, Peito do Galo, Birtelo e Lagoa. A partir de Lagoa, a rota era igual à dos lugares da Baixa de Cabril.
- Rota dos lugares de Cima (Xertelo, Lapela e Azevedo): Carvalho do Sinal, Alto do Castanheiro, Volta da Cuba, Negras, Garganta das Negras, Marbeixe, Sombras, caminho da Corga das Sombras, Vilameá.
Quando havia guarda na serra ou nevoeiro, iam a corta-mato e cada contrabandista escolhia o seu caminho alternativo.
Sombras era o local onde quase todas as rotas convergiam. Por vezes, os de Pincães e de Fafião desviavam-se para as Alvas, para caminharem o mais possível em território português, e os dos lugares de "Cima", para a Garganta das Negras. A Guarda Fiscal montava a "rede", no dizer dos contrabandistas, sobretudo aos fins de semana, nestes locais. A dureza das rotas do percurso pode imaginar-se pelas cotas de altitude do trilho. A rota dos lugares da "Baixa" (Vila, Cavalos, Chãos e S. Ane), por exemplo, principiava nos 307 m, depois de uma caminhada de cerca de trinta minutos, na Corte do Costa, sobe para os 600 m; na Amoreira 1500 m e em Lóbios baixava para os 478 m. Estima-se em seis horas o tempo que demorava a chegar de Cabril a Vilameá.
Para cá da raia, o contrabandista também não tinha a vida facilitada. As povoações raianas estavam sob apertada vigilância da guarda fiscal; o volfrâmio era preciso levá-lo até ao receptor em Salamonde, Santa Leocádia ou Rio Tinto, percurso longo e difícil, pela travessia do Cávado; o pastor tinha que respeitar os usos e costumes das pastagens e fazer-se acompanhar das guias do registo de animais; e o "Cabaneiro" não se podia descuidar a vigiar a coba do carvão para que as torgas não ficassem em cinza.
Todas as actividades praticadas pelas Gentes da freguesia de Cabril, na serra do Gerês, eram ilegais ou perto disso. Qualquer produto, a uma distância de 4 km do quartel da guarda fiscal, sem guias e fora da propriedade de origem estavam em situação ilegal. O facto de comprar e transportar ovos de uma localidade para outra constituía uma prática punida por lei.
(...)"
O autor do livro "Para que a memória não se apague", António Fernando Guimarães, pode ser contactado através de correio electrónico.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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