O estudo das velhas obras sobre a Serra do Gerês, dá-nos acesso a velhos topónimos que hoje caíram no esquecimento. Tal aconteceu com este texto ao surgir a referência à 'Quelha dos Olhos Caveiros'.
O texto a seguir é a transcrição da segunda parte do quarto capítulo do livro "No Gerez - a Natureza e o Homem", de Sousa Costa (1934)... Foi mantida a grafia original da obra.
Dos seus costumes colectivos tive ocasião de observar, num dos dias de passagem pelas termas do Gerez, e das minhas excursões serranas, o «chamado» do «vezeireiro», o «chamado» convocando o «acôrdo» por perigo urgente para os interêsses de vizinho e do lugar.
Nêsse dia, dos lados do Cabril, com os seus mil e quinhentos metros de altitude, ouço o som prolongado da buzina - que repercute por cêrros e recôncavos, que se estende, para além do Cabril e do Pé de Medéla.
Em baixo, em S. João do Campo, entre veigas frescas que os caudais da serra fartam de águas limpidas, a murmurar, sente-se a agitação de parque de guerra em alvorôço.
Os seis membros do «acôrdo», com o juíz e o procurador, largando o cabo da enxada, correm do adro da capela. E mãos enconchadas nos ouvidos, respiração suspensa, olhar fixo, ficam por instantes à escuta. Reboa no espaço novo sinal de alarme.
- Vem das Mêsas! - diz o juíz.
De facto, daí a pouco, dos cimos das Mêsas, cabeços debruados de despenhadeiros, com precipícios agrestes que escutam perpètuamente o rugir das cachoeiras do Homem, uma voz sumida, longínqua, substitui o roncar da buzina, a bradar:
- Vaca caída! - acentuando, distendendo as sílabas em prolongação cavernosa. E continua, mais espaçada: - Quélha...dos...Olhos...Cávei...ei...ros!
Os do acoôrdo» e o juíz entreolham-se, num arrepio. Na Quelha dos Olhos Caveiros! Lá morrera o animal! Porque a morte era certa. A vaca tinha dado a alma aos fraguedos que lhe desconjuntaram os ossos. E enquanto a voz do «vezeireiro», lá do alto, torna a rogar socorro, êles, lestos, o juíz à frente, para levantar o povo, o procurador atrás, para ordenar providências, seguem em direcção às veigas, onde homens, mulheres e crianças, tendo abandonado o trabalho, esperam ordens de quem manda.
- Às Mêsas! - grita o juíz, agitando o chapéu.
- Cordas, enxadas, foices! - intima o procurador, dum outeiro com domínio sôbre os campos de sabôr idílico, cobertos de linho e milharais,
E daí a nada, todo o povoado, porque a vaca é como se fôsse de todos, arripia caminho para as Mêsas, êste por um contraforte da montanha, aquele por um refrego mais suave, cada um com o seu utensílio, us e outros com o seu esfôrço solidário.
O que fôra, afinal? Uma vaca, que da eminência dum cêrro tombara em fundo barranco. O caso é frequente. A manada, bois e vacas, com as suas crias, percorrem os sítios mais perigosos, onde a herva cresce acolhedora, onde a água canta e sorri. O «vezeireiro» conhece a serra e as suas obrigações. Conduz o gado através de carreiros abertos de ano para ano. Reune-o à noite no mesmo curral. Vigia o lobo, não lhe sangre de surpresa alguma rez tresmalhada - pois a perda da rez cairá implacável sôbre a arca das suas economias individuais. Mas o que não pode, a-pesar-de extremos cuidados, é evitar que um animal se desequilibre, perca o pé, e zás, e role como penedo sôbre a aresta dos penedos arreganhados, à maneira de dentes, na bôca dos abismos.
A buzina calara-se. O «vezeireiro» emudecera. Pelos declives, quebrando o silêncio autero da serrania, ouve-se apenas, aqui em assobio, além o bater de enxada, mais abaixo o cascalhar de tamancos. Quando os primeiros homens ganham a assomada donde partira o «chamado», o «vezeireiro» faz novo sinal - agora para indicar os fraguedos e o precipicio em que a coitada se estatelara.
Chegam, o juíz com a sua enxada, o procurador com as suas cordas, uma mulher com a sua foice, um rapaz com o seu cajado. E estranhos à beleza estática que os envolve, sob o azul puríssimo em que o sol fulgura, tendo aos lados, à esquerda e à direita, as esculturas pacíficas da manada - estátuas de ouro em pedestais de granito bronzeado, indiferentes à agonia suma das da sua raça - quedam-se um momento para voltar a descer. E então descem, um a um, de pedra em pedra, de saliência em saliência, a agarrarem-se aos tojos, a pendurarem-se das raízes, a cortarem silvedos, até se aproximarem da vaca, à volta da qual fazem roda, lamentando-a pelo sangue que lhe corre da bôca, pela língua retalhada entre os dentes, pelos olhos de fora, pela agonia mansa, no leve resfolgar da fadiga,
Depois, em obediência às ordenações do costume, verificando que está morta, tiram-lhe a pele com os instrumentos cortantes que se haviam munido. Esquartejam-na. Dividem-na em lotes. Transportam-na para o lugar. Ali, pesada nos arrestéis, é distribuída pelos vizinhos - pagando o arratel a um escudo, agora que tudo subiu de preço, porque dantes não custava senão três vinténs. E assim, com o auxílio de todos, sendo partilhado por todos o prejuízo dum, êste fica apto a substituir a cava na feira próxima do Penedo ou de Vieira.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
Nêsse dia, dos lados do Cabril, com os seus mil e quinhentos metros de altitude, ouço o som prolongado da buzina - que repercute por cêrros e recôncavos, que se estende, para além do Cabril e do Pé de Medéla.
Em baixo, em S. João do Campo, entre veigas frescas que os caudais da serra fartam de águas limpidas, a murmurar, sente-se a agitação de parque de guerra em alvorôço.
Os seis membros do «acôrdo», com o juíz e o procurador, largando o cabo da enxada, correm do adro da capela. E mãos enconchadas nos ouvidos, respiração suspensa, olhar fixo, ficam por instantes à escuta. Reboa no espaço novo sinal de alarme.
- Vem das Mêsas! - diz o juíz.
De facto, daí a pouco, dos cimos das Mêsas, cabeços debruados de despenhadeiros, com precipícios agrestes que escutam perpètuamente o rugir das cachoeiras do Homem, uma voz sumida, longínqua, substitui o roncar da buzina, a bradar:
- Vaca caída! - acentuando, distendendo as sílabas em prolongação cavernosa. E continua, mais espaçada: - Quélha...dos...Olhos...Cávei...ei...ros!
Os do acoôrdo» e o juíz entreolham-se, num arrepio. Na Quelha dos Olhos Caveiros! Lá morrera o animal! Porque a morte era certa. A vaca tinha dado a alma aos fraguedos que lhe desconjuntaram os ossos. E enquanto a voz do «vezeireiro», lá do alto, torna a rogar socorro, êles, lestos, o juíz à frente, para levantar o povo, o procurador atrás, para ordenar providências, seguem em direcção às veigas, onde homens, mulheres e crianças, tendo abandonado o trabalho, esperam ordens de quem manda.
- Às Mêsas! - grita o juíz, agitando o chapéu.
- Cordas, enxadas, foices! - intima o procurador, dum outeiro com domínio sôbre os campos de sabôr idílico, cobertos de linho e milharais,
E daí a nada, todo o povoado, porque a vaca é como se fôsse de todos, arripia caminho para as Mêsas, êste por um contraforte da montanha, aquele por um refrego mais suave, cada um com o seu utensílio, us e outros com o seu esfôrço solidário.
O que fôra, afinal? Uma vaca, que da eminência dum cêrro tombara em fundo barranco. O caso é frequente. A manada, bois e vacas, com as suas crias, percorrem os sítios mais perigosos, onde a herva cresce acolhedora, onde a água canta e sorri. O «vezeireiro» conhece a serra e as suas obrigações. Conduz o gado através de carreiros abertos de ano para ano. Reune-o à noite no mesmo curral. Vigia o lobo, não lhe sangre de surpresa alguma rez tresmalhada - pois a perda da rez cairá implacável sôbre a arca das suas economias individuais. Mas o que não pode, a-pesar-de extremos cuidados, é evitar que um animal se desequilibre, perca o pé, e zás, e role como penedo sôbre a aresta dos penedos arreganhados, à maneira de dentes, na bôca dos abismos.
A buzina calara-se. O «vezeireiro» emudecera. Pelos declives, quebrando o silêncio autero da serrania, ouve-se apenas, aqui em assobio, além o bater de enxada, mais abaixo o cascalhar de tamancos. Quando os primeiros homens ganham a assomada donde partira o «chamado», o «vezeireiro» faz novo sinal - agora para indicar os fraguedos e o precipicio em que a coitada se estatelara.
Chegam, o juíz com a sua enxada, o procurador com as suas cordas, uma mulher com a sua foice, um rapaz com o seu cajado. E estranhos à beleza estática que os envolve, sob o azul puríssimo em que o sol fulgura, tendo aos lados, à esquerda e à direita, as esculturas pacíficas da manada - estátuas de ouro em pedestais de granito bronzeado, indiferentes à agonia suma das da sua raça - quedam-se um momento para voltar a descer. E então descem, um a um, de pedra em pedra, de saliência em saliência, a agarrarem-se aos tojos, a pendurarem-se das raízes, a cortarem silvedos, até se aproximarem da vaca, à volta da qual fazem roda, lamentando-a pelo sangue que lhe corre da bôca, pela língua retalhada entre os dentes, pelos olhos de fora, pela agonia mansa, no leve resfolgar da fadiga,
Depois, em obediência às ordenações do costume, verificando que está morta, tiram-lhe a pele com os instrumentos cortantes que se haviam munido. Esquartejam-na. Dividem-na em lotes. Transportam-na para o lugar. Ali, pesada nos arrestéis, é distribuída pelos vizinhos - pagando o arratel a um escudo, agora que tudo subiu de preço, porque dantes não custava senão três vinténs. E assim, com o auxílio de todos, sendo partilhado por todos o prejuízo dum, êste fica apto a substituir a cava na feira próxima do Penedo ou de Vieira.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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